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Franz Kafka

RODRIGO PEREIRA GONÇALVES DE SOUTA 13277

Created on February 20, 2023

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Transcript

Escola Secundária Daniel Sampaio

Projeto de Leitura E-Portfolio

Ler Franz Kafka A Metamorfose

Aluno: Rodrigo Souta nº 26 Ano: 11º Turma: D Disciplina: Português Professora: Rute Magalhães

Ano Letivo 2022 / 2023

Caricatura de Kafka HENRIC ARYEE

«Penso que devíamos ler apenas os livros que nos mordem e nos picam. Se o livro que lemos não nos acorda com uma punhada no crânio, para quê lermos então o livro? (…) um livro tem de ser o machado para o mar gelado que se encontra dentro de nós».

Franz Kafka, em carta dirigida ao seu amigo Oscar Pollak 27 de Janeiro de 1904

Dedicado a todos os que se atreveram a pensar e a desafiar o real através da escrita.

Desenho de Kafka

Índice
  • Considerações introdutórias------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------5
  • Como descobri Franz Kafka--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------8
  • Quem foi Franz Kafka?-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------12
  • A praga de Kafka--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------19
  • Inflûencia de Kafka na cultura---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------25
  • O que significa Kafkiano?---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------29
  • Kafka: A escrita e literatura-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------31
  • O pedido de destruição da obra-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------34
  • A Metamorfose - Apresentação da obra----------------------------------------------------------------------------------------------------------37
  • O título: A Metamorfose-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------40
  • O processo de escrita da Metamorfose----------------------------------------------------------------------------------------------------------43
  • Ficha de Leitura: Personagens---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------49
  • Ficha de Leitura: A Narrativa: Estrutura e conteúdo------------------------------------------------------------------------------------------57
  • A Metamorfose: Uma interpretação possível---------------------------------------------------------------------------------------------------76
  • Bibliografia e Webgrafia-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------83

Considerações introdutórias

Este e-portefolio foi elaborado a partir da leitura de um dos livros que marcou a literatura do século XX: A Metamorfose, de Franz Kafka. A leitura da obra foi feita através da edição da Relógio D'Água. As citações do texto A Metamorfose presentes neste e-portefólio foram feitas a partir desta edição. Tem um prefácio de Vladimir Nabokov com informações bastante interessantes para contextualizar a obra. Este prefácio resulta da análise que Nabokov fez para as suas aulas de literatura. Recorri também à versão da editora Livros do Brasil, mais propriamente ao prefácio do tradutor da obra, Álvaro Gonçalves, e à cronologia biográfica elaborada por ele. Tem um levantamento muito completo, organizado cronologicamente, da vida e obra de Kafka.

Edição Relógio D'Água

Edição Livros do Brasil

Considerações introdutórias

No e-portefólio deste ano letivo vou apresentar a obra A Metamorfose de Franz Kafka. Comecei pela biografia do autor, uma vez que há aspetos da sua vida que se encontram refletidos na obra, tais como a sua relação conturbada com o pai e a sua relação com o trabalho burocrático que era obrigado a fazer nas duas companhias de seguros onde trabalhou. Realizei também uma apresentação acerca da influência de Kafka na cultura, uma vez que, por se ter tornado um autor de culto, serviu de inspiração a várias manifestações artísticas, desde filmes, a peças musicais, entre outras. É ainda analisado o sentido do conceito "Kafkiano" que já entrou no nosso vocabulário. O que significa Kafkiano?

Capa alusiva à edição original da obra em Alemão. Imagem atrás é a frase de abertura da Metamorfose representada na novela gráfica de Robert Crumb & David Zane Mairowitz.

Considerações introdutórias

Este e-portefólio inclui também informação acerca da relação de Kafka com a literatura, bem como informações referentes ao processo de escrita da obra A Metamorfose e uma apresentação da mesma. No que se refere à obra, este e-porteflio inclui a análise das personagens e relação entre elas; uma explicação do que se passa em cada parte da história e, por fim, a minha interpretação da obra.

Primeira página do exemplar de A Metamorfose utilizado por Nabokov na aulas.

Como descobri Franz Kafka?

Primo Levi, o escritor que descobri e trabalhei no passado ano letivo, levou-me a Kafka. No presente ano letivo continuei a ler Primo Levi, desta vez aquele que foi considerado o melhor livro de ciência alguma vez escrito: O Sistema Periódico. E, curiosamente, foi graças a Primo Levi que comecei a ler Kafka. Franz Kafka e Primo Levi marcaram a literatura do século XX. Apesar de serem escritores muito diferentes, há aspetos comuns aos dois que vão muito para além do facto de ambos serem escritores de origem judaica. Ambos viram na escrita uma forma de sobrevivência e é impossível ler qualquer um deles e não ficarmos tocados. Embora tivessem outras profissões, ambos dedicaram a sua vida à escrita. Levi, químico de profissão, sobrevivente do Holocausto e escritor, por esta ordem invariável, viu na literatura a forma de manter viva a memória do Holocausto.

Franz Kafka. Caricatura de Neale Osborne

Primo Levi. Caricatura de Neale Osborne

Como descobri Franz Kafka?

Encontrou-se com ela por uma necessidade de testemunhar através da escrita, contando os horrores que um homem pode fazer contra outro homem. A escrita ajudou-o a sobreviver. Também Kafka, cuja atividade profissional foi exercida na burocracia das companhias de seguros, necessitava da escrita para viver. Numa carta à sua noiva Felice Bauer, datada de 14 de agosto de 1913, afirma: «Não tenho nenhum interesse literário, mas sou feito de literatura, nada mais sou e nada mais posso ser.» Ser escritor foi o seu verdadeiro ofício. Ambos são representantes de um determinado género literário: Kafka, da literatura do absurdo; Levi, da literatura de testemunho. E, curiosamente, foi Levi que me levou a descobrir Kaffka.

Francisco Javier Olea. Franz Kafka. Imagem: https://i.pinimg.com/564x/84/22/f1/8422f12b3987db292d5d2b10b39e7a0c.jpg ..............................

Como descobri FranzKafka?

Através da pesquisa que fui realizando acerca de Primo Levi, descobri, através do Centro Internazionale di Studi Primi Levi, que em 1983 Primo Levi traduziu O Processo de Kafka, a convite da sua editora, a Einaudi, para a nova série editada por esta «Escritores traduzidos por escritores». As suas observações acerca do autor e a referência a uma obra onde uma personagem se encontra “transformado num inseto” deixaram-me curioso e com vontade de ler esta obra e conhecer melhor o seu autor. Pesquisando, descobri que esta obra era A Metamorfose que prontamente me senti tentado a ler. Sobre A Metamorfose, comentou Levi em declarações ao jornal italiano La Stampa, após ter saído a sua tradução de O Processo: desesperadamente sozinho, incapaz de comunicar e pensar, apenas capaz de sofrer”.

Franz Kafka. Ilustração retirada de: https://in.pinterest.com/pin/13721973851746285/

Como descobri Franz Kafka?

“Esse meu amor [por Kafka] é (…) semelhante ao sentimento que se sente por um ente querido que sofre e pede ajuda que não podemos dar. (…) O seu sofrimento é genuíno e contínuo, assalta-nos e nunca nos abandona: sentimo-nos como as suas personagens (…) transformados num inseto desajeitado, odiado por todos. Embora reconheça que a obra de Kafka é muito diferente da sua, Levi admirou Kafka e esta admiração contagiou-me. Nas suas declarações ao jornal citado, explicando os motivos que o levaram a aceitar a tradução de um autor tão diferente de si, Primo Levi afirmou: “Pode-se também sentir atração por aqueles que são muito diferentes de nós, justamente porque são: se assim não fosse, escritores, leitores e tradutores ficariam estratificados em castas rígidas, como os indianos, (…) todos leriam apenas os escritores que estão relacionados com eles próprios, o mundo seria (ou pareceria) menos variado e não surgiriam ideias novas.

Franz Kafka. Imagem retirada de https://www.publico.pt/2015/02/27/culturaipsilon/noticia/so-como-franz-kafka-1686503

Quem foi Franz Kafka?

(3 de julho de 1883 — 3 de junho de 1924)

Franz Kafka foi um escritor de língua alemã, reconhecido como um dos grandes escritores do século XX. O seu legado literário é variado: contos, novelas, aforismos, diários e cartas. Não teve o reconhecimento literário merecido em vida, mas sim só após a sua morte. Nasceu a 3 de julho de 1883 em Praga, na altura parte da província da Boémia, pertencente ao Império Austro-Húngaro, atual República Checa, no seio de uma família da média burguesia judia de expressão alemã.

Franz Kafka em 1923

Quem foi Franz Kafka?

Franz Kafka foi o primeiro filho de Julie Kafka e Hermann Kafka, que tiveram seis filhos. Os dois irmãos de Franz, Georg e Heinrich, morreram na infância antes de Franz completar sete anos. Kafka foi o terceiro filho a morrer. As três irmãs que lhe sobreviveram eram Gabriele ("Ellie", 1889-1944), Valerie ("Valli", 1890-1942) e Ottilie ("Ottla, 1892-1943). Todas morreram durante o holocausto, acabando por não resistir aos campos nazis, para onde foram levadas durante a Segunda Guerra Mundial.

Os pais de Franz Kafka, Hermann e Julie Kafka, cerca de 1913. Kafka com o seu pai (canto inferior esquerdo)-

Quem foi Franz Kafka?

Após concluir a escola primária em 1893, Kafka foi aceite no rigoroso Liceu Nacional de Língua Alemã, conhecido por Altstädter Deutsches Gymnasium, instalado no Palácio Kinsky, no Altstädter Ring. O alemão era a língua de ensino, mas Kafka também falava e escrevia em checo. Durante a vida de Kafka, a maior parte da população de Praga falava checo e a divisão entre os falantes de checo e alemão era visível. A comunidade judaica achou-se muitas vezes dividida entre esses dois grupos. Kafka era fluente nas duas línguas, considerando o alemão como a sua língua materna. Escreveu a sua obra em alemão.

Palácio Kinsky, onde estava instalado o Liceu Nacional de Língua Alemã frequentado por Kafka (Staats-Gymnasium mit deutscher Unterrichtssprache).

Quem foi Franz Kafka?

Kafka concluiu os seus exames finais em 1901, terminou os estudos secundários (Abitur) e foi aceite na Deutsche Universität in Prag, a Universidade Alemã de Praga, no mesmo ano. Após ter frequentado as aulas de Química, Germanística e História de Arte, Kafka decidiu-se definitivamente, por influência do pai, pelo curso de Direito, apesar de não sentir grande empatia por este curso. Durante os seus estudos universitários conhece Max Brod em 1902 e este tornar-se-ia o seu grande amigo e testamenteiro literário.

Fotografia de Max Brod, amigo e testamenteiro literário de Kafka, em 1914.

Quem foi Franz Kafka?

Franz Kafka concluiu os estudos jurídicos universitários com o título de Doutor em Direito em 1906. Após um ano de prática jurídica, a partir de 1907 a sua atividade profissional passa a ser exercida em Institutos de Seguros em Praga, primeiro na companhia de seguros privada italiana Assicurazioni-Generali, em Praga, mudando-se depois para uma companhia semiestatal em 1908, o Instituto de Seguros por Acidentes de Trabalho do Reino da Boémia. Kafka afirmava constantemente detestar o seu trabalho, este era apenas o seu meio de subsistência. Deixava-o muito insatisfeito, uma vez que dificultava a sua concentração na escrita, além de ficar com pouco tempo para se dedicar à mesma. A escrita era o seu verdadeiro interesse e estava cada vez mais ligado à mesma.

Antiga sede do Instituto de Seguros por Acidentes de Trabalho do Reino da Boémia, onde trabalhou Kafka.

Quem foi Franz Kafka?

Viveu apenas o primeiro conflito mundial, e não vestiu a farda militar porque a sua presença foi considerada indispensável na empresa de seguros onde trabalhava. Mesmo durante os difíceis anos de 1914 a 18, o escritor continuou a sua atividade literária. Em 1918 o Instituto de Seguros afastou Kafka com uma pensão devido à sua doença, uma tuberculose que havia sido diagnosticada a 4 de setembro de 1917 e para a qual não havia cura na época. Em fevereiro de 1924, o seu estado de saúde piora. Acabou por passar a maior parte do resto da sua vida em sanatórios. Mesmo doente, dedicou os últimos tempos de vida à literatura, escrevendo até aos últimos dias. A sua obra tornou-se uma das mais influentes do mundo literário do século XX.

Franz Kafka, gravura de Jan Hladík, de 1978

Quem foi Franz Kafka?

Morreu a 3 de junho de 1924, pelas 4 horas da manhã, no sanatório do Dr. Hugo Hoffmann, a poucos quilómetros de Viena, não resistindo à tuberculose. A fome precipitou a sua morte. Kafka sofria de tuberculose laríngea e a condição da sua garganta tornou o ato de comer uma atividade muito dolorosa. O seu corpo foi trazido de volta a Praga, onde foi sepultado em 11 de junho de 1924, no Novo Cemitério Judeu, em Žižkov. Publicou em vida apenas sete pequenos livros e contos em revistas literárias. Deixou três obras fragmentárias que seriam postumamente publicados pelo seu amigo e testamenteiro Max Brod: O Processo (1925); O Castelo (1926) e América (1927), as quais se tornaram verdadeiros livros de culto.

Túmulo da família Kafka, no Novo Cemitério Judeu, em Praga.

A Praga de Kafka

Kafka nasceu em Praga. Viveu sempre nesta cidade, exceção feita a algumas viagens ou estadias em sanatórios. Por isso, esta cidade está intimamente ligada ao escritor. Apesar de ter escrito em alemão, Kafka foi um filho da capital Checa. A belíssima cidade de Praga foi o grandioso cenário da sua vida. A cidade onde viveu grande parte da sua vida estava-lhe no imaginário e foi a sua atmosfera carregada de mistério e nostalgia que fez nascer no imaginário de Kafka os cenários da sua obra. Praga era na altura a terceira maior cidade do império austro-húngaro dos Habsburgos. Kafka faz-lhe referência nos seus diários e em algumas cartas. A 20 de dezembro de 1902, numa carta dirigida ao seu amigo, Oscar Pollak, Kafka escreve umas das suas frases mais citadas: «Praga não larga. A nós os dois. Esta mãezinha tem garras.» ( Álvaro Gonçalves, Cronologia Biográfica, pag. 14)

Desenho de Kafka muito conhecido: Kafka em Praga.

A Praga de Kafka

Esta lindíssima cidade evoca a memória do escritor através de sítios emblemáticos que ficaram para sempre a ele ligados, desde os lugares onde morou aos lugares que frequentou. Kafka viveu grande parte da sua vida perto da Cidade Velha. A maior parte das casas onde viveu encontram-se situadas na Praça da Cidade Antiga. A casa onde Kafka nasceu já não existe, mas há uma outra, construída no mesmo lugar e onde está aberta uma exposição permanente sobre a sua vida. É um dos símbolos mais importantes de Praga. Fica entre a Staroměstské náměstí e Josefov (bairro judeu), mais propriamente na esquina das ruas Maiselova e Kaprova. Há uma placa com o rosto de Kafka que assinala a casa, na qual está escrito: “Franz Kafka nasceu aqui em 3 de Julho de 1883.”

Placa que indica o local onde Kafka nasceu, em Praga.

A Praga de Kafka

Outra casa emblemática é a casa de uma das suas irmãs, onde Kafka viveu entre 1916 e 1917, e onde escreveu alguns dos seus trabalhos, como Um Médico Rural. Fica no complexo do Castelo de Praga, é o número 22 da Viela Dourada (Golden Lane), é uma das atrações do Castelo de Praga. Atualmente nesta casa funciona uma loja de livros souvenirs. Além das casas onde morou, há ainda a assinalar como local emblemático a Sinagoga onde Kafka realizou a cerimónia judaica Bar Mitzvah. Uma das lâmpadas da vitrina que imita as duas Tábuas onde Moisés recebeu os Dez Mandamentos é dedicada a Franz Kafka. Outro local importante é o Palácio Kinský, perto da Praça da Cidade Velha, de cor rosa brilhante, onde frequentou a escola secundária alemã.

22, Golden Lane, a casa que Kafka alugou à sua irmã entre 1916 e 1917

Pormenor da placa alusiva a Franz Kafka que está à entrada da casa, atual loja de livros e souvenirs.

A Praga de Kafka

O Café Louvre, fundado em 1902, é outro local que recorda a memória do escritor, pois era um ponto de encontro de Kafka e um círculo de amigos intelectuais. No interior do café, há muito material sobre esses encontros, que aconteceram algumas vezes em salas privadas, mais ou menos entre 1905 e 1907. Outro café importante para Kafka foi o Café Arco que foi um dos centros da vida intelectual judaico-alemã nos primeiros anos do século XX. Era o ponto de encontro favorito de Max Brod.

Evocação alusiva à presença de Kafka e ao seu círculo de amigos preservada no Café Louvre.

A Praga de Kafka

Outro memorial a Kafka está situado no número dezassete da Praça da Cidade Velha, a antiga casa de Berta Fanta, figura intelectual de Praga, casa que alojava um famoso salão literário e filosófico na sua sala de visitas. A placa na casa contém a seguinte inscrição: “Neste salão da Sra. Berta Fanta, Albert Einstein, professor na Universidade de Praga entre 1911 e 1912, fundador da Teoria da Relatividade e vencedor de um prémio Nobel, tocava violino e reunia-se com os seus amigos, escritores famosos, Max Brod e Franz Kafka”.

Placa do lado de fora do salão da Sra. Berta Fanta, com a inscrição citada alusiva a Albert Einstein, Max Brod e Franz Kafka.

A Praga de Kafka

Em Praga foi fundado o Museu de Franz Kafka, dedicado à vida e obra do escritor. Há fotografias, manuscritos e diários das obras de Kafka, assim como material audiovisual. Foi também criado o Prémio Franz Kafka, um prémio literário anual atribuído naquela cidade e patrocinado pela Sociedade Franz Kafka, que tem como objetivo promover a literatura. A atribuição do prémio acontece numa cerimónia realizada na Cidade Velha no feriado checo do fim de Outubro. Praga é considerada uma das mais belas cidades da Europa e atrai inúmeros turistas que fazem circuitos turísticos para visitar a “Praga de Kafka”.

Estátua de bronze dedicada a Kafka, em Praga. Escultura de Jaroslav Róna.

Influência de Kafka na Cultura

A influência de Kafka não se limita aos meios literários, ainda que a sua obra tenha influenciado vários escritores, como, por exemplo, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Gabriel García Marquéz, Jorge Luis Borges e Èugene Ionesco. A influência do escritor na cultura estende-se também a outras formas de arte, como o cinema, o teatro, a música e as artes visuais. Franz Kafka inspirou vários realizadores que trouxeram para o cinema filmes sobre a sua vida e inspirados na sua obra. Contam-se entre estes o filme dirigido por Steven Soderbergh, com Jeremy Irons no papel de Kafka. Mistura a vida e a obra de Kafka, criando um retrato semi-biográfico de Kafka, passando por diversos livros seus, principalmente O Castelo e O Processo.

Kafka, de Steven Soderbergh. Na capa do DVD, Jeremy Irons no papel de Kafka.

Influência de Kafka na Cultura

Também inspirada na vida de Kafka, foi realizada em 1993 uma curta-metragem de comédia da BBC Scotland que venceu um Óscar: Franz Kafka's It's a Wonderful Life. Há ainda a referir o filme de Orson Welles intitulado O Processo (1962). Sobre este filme disse: "Diga o que quiser, mas O Processo é minha obra principal, melhor até do que Citizen Kane". No que respeita ao teatro, Kafka's Dick é uma peça do dramaturgo Alan Bennett que estreou no Reino Unido em 1986, em que os fantasmas de Kafka, o seu pai Hermann e Max Brod entram na casa de um agente de seguros inglês, representando Kafka.

Imagem do filme O Processo (DVD).

Imagem do filme Franz Kafka's It's a Wonderful Life (DVD).

Influência de Kafka na Cultura

Na música, destaco a peça do compositor György Kurtág para soprano e violino, composta na Roménia em 1985, que usava passagens do diário e das cartas de Kafka e a ópera do compositor Philip Glass In the Penal Colony, inspirada na obra de Kafka com o mesmo nome, composta em 2000. Destaco também a compilação musical produzida na Bielorrússia em 2012 Sound Interpretations — Dedication To Franz Kafka, em que músicos repensam o legado literário de Kafka. No que respeita às artes visuais, Andy Warhol pintou um retrato de Kafka integrado nos Dez Retratos de Judeus do Século XX, um conjunto em que cada retrato é de uma figura muito influente nas artes, ciências ou direito. Também a pintora Manuela Bacelar retratou Kafka.

Andy Warhol - Franz Kafka (Ten Portraits of Jews of the Twentieth Century), 1980.

Influência de Kafka na Cultura

Kafka também inspirou livros. Destacamos o romance Kafka à Beira-Mar, do escritor Japonês Haruki Murakami e Kafka's Soup, um livro de culinária com uma “pitada” literária, com receitas escritas por Mark Crick ao estilo kafkiano. É uma ilustração divertida da história da literatura mundial em 14 receitas, sendo a Sopa Rápida de Missô à la Franz Kafka uma delas. A obra de Kafka inspirou igualmente a criação do termo "kafkiano", usado tanto em português como em outras línguas para descrever conceitos e situações que remetem à sua obra, incluindo A Metamorfose que vai ser analisada neste portefólio.

Kafka retratado pela pintora Manuela Bacelar

Os livros inspirados em Franz Kafka

O que significa Kafkiano?

Na sua produção literária, e refiro aquela que trabalhei em particular, Kafka conseguiu transmitir de tal modo bem os lados mais sombrios da existência humana que o vocábulo kafkiano se tornou um sinónimo das situações para as quais não conseguimos encontrar um sentido, e contra as quais lutamos, embora pareçam não ter fim à vista.

Imagem alusiva ao termo Kafkiano retirada de: https://www.culturamas.es/2016/11/06/el-verdadero-significado-de-la-palabra-kafkiano/. Inclui um vídeo bastante elucidativo.

O que significa Kafkiano?

O termo "kafkiano" popularizou-se para caracterizar situações absurdas que não fazem sentido. "Kafkiano" tornou-se um termo para caracterizar todas as situações complexas, estranhas, bizarras ou ilógicas, no fundo, todas as situações que escapam à compreensão. Como exemplo, estão as complicadas situações burocráticas que subjugam as pessoas e as deixam sem possibilidade de ajuda. Há alguns filmes e séries de televisão descritos como "Kafkianos" pela sua estranheza, como, por exemplo, os filmes Brazil (1985), Dark City (1998), Barton Fink (1991) e a série televisiva The Prisoner, tanto a versão original de 1965 quanto o remake de 2009. O livro A Metamorfose mostra bem esta estranheza do universo literário de Kafka.

Franz Kafka por Oliver Quinto. Imagem retirada de Um dia kafkiano, in Rascunho, O Jornal de Literatura do Brasil: https://rascunho.com.br/liberado/um-dia-kafkiano/

Kafka: A escrita e a literatura

Apesar de estudar Direito por influência do pai, o verdadeiro interesse de Kafka era a literatura. Durante o tempo de estudo na Universidade, Kafka fez parte de um clube de estudantes, o Salão de Leitura e Oratória dos Estudantes Alemães (Lese-und Redehalle der Deutschen Studenten), que organizava eventos literários, leituras e outras atividades. Kafka foi sempre um ávido leitor. Leu, em conjunto com Max Brod, Protágoras, de Platão, no original em grego, por iniciativa de Brod, e A Educação Sentimental e A Tentação de Santo Antão, de Gustave Flaubert, em francês, por iniciativa própria. Kafka considerava Fiódor Dostoiévski, Flaubert e Heinrich von Kleist os seus "verdadeiros irmãos". Além destes escritores, também gostava das obras de Goethe.

Retrato de Fiódor Dostoiévski (1872), por Vassilij Grigorovič Perov, escritor a quem Kafka chamou "irmão".

Kafka: A escrita e a literatura

A escrita era muito importante para Kafka; considerava-a uma "forma de oração". Reservava todo o tempo que podia às suas obras. Socorrendo-se muitas vezes da solidão noturna, o escritor chegava a escrever horas a fio. Era muito sensível ao barulho e preferia a quietude quando escrevia. Há várias referências de Kafka à sua relação com a literatura, considerando-a como o mais importante na vida. Em 1911 inicia o diário de viagem e no registo diarístico de 19 de fevereiro constata que possui uma inspiração literária com características muito especiais: «Quando escrevo ao acaso uma frase, como por exemplo, “Ele olhava em direção à janela”, ela já é perfeita.”

Desenho de Kafka

Kafka: A escrita e a literatura

A 20 de julho de 1914 na carta da mãe de Kafka à mãe de Felice Bauer, depois de Kafka ter rompido o noivado com Felice, pode ler-se: “Talvez ele não tenha sido feito para o casamento, pois a sua ambição é apenas a escrita, que é o que mais lhe interessa na vida.” (carta citada na “Cronologia Biográfica” de Álvaro Gonçalves, in Metamorfose, ed. Livros do Brasil, pag. 18). Numa carta a Max Brod datada de 12 de julho de 1922, Kafka afirma: “Toda esta escrita não é outra coisa senão a bandeira de Robinson no ponto mais alto da ilha.” Em fins de março de 1923, Kafka escreve: “Esta escrita é para mim, de uma forma cruel para qualquer pessoa à minha volta, o mais importante na Terra, tal como é a loucura para o louco.” (Álvaro Gonçalves, op. cit., pag. 21).

Franz Kafka ilustrado por Björn Griesbach

O pedido de destruição da obra

Na história da literatura há dois casos de pedido de destruição da obra que ficaram célebres: Virgílio e Franz Kafka. Virgílio, quando estava prestes a morrer, encarregou os seus amigos de reduzir a cinzas o inacabado manuscrito da Eneida, que reunia onze anos de trabalho. Kafka encomendou a Max Brod a destruição das narrativas que hoje lhe asseguram a fama. Ambos contaram com a piedosa desobediência dos seus amigos. No caso de Kafka, devemos à desobediência de Brod poder ler a sua obra. Kafka deixou os direitos da sua obra, tanto a publicada quanto a não publicada, para o seu amigo Max Brod. Traçou o destino que queria para a sua escrita após a sua morte e deixou-o por escrito ao seu amigo e testamenteiro literário Max Brod.

Embora Kafka tenha pedido ao seu amigo Max Brod para queimar o que escreveu depois da sua morte, Brod guardou tudo e muitos dos seus manuscritos estão preservados na Biblioteca Nacional de Israel. A imagem apresenta a nota manuscrita dirigida por Kafka a Brod com o pedido de destruição da obra, em1921. Biblioteca Nacional de Israel.

O pedido de destruição da obra

Em princípios de outubro de 1921, escreve um bilhete a tinta dirigido a Brod, o seu primeiro testamento literário conhecido: “Caro Max, o meu último pedido: tudo o que for encontrado no meu espólio… em forma de diários, manuscritos, cartas, de outros e minhas, desenhos, etc. deve ser queimado integralmente e sem ser lido, assim como todos os escritos e desenhos que tu ou outras pessoas, a quem em meu nome os pedirás, tenham em seu poder. As cartas que as pessoas não te queiram dar, devem, elas próprias, comprometer-se a queimá-las. Teu Franz Kafka.” (Álvaro Gonçalves, op. cit., pag. 20)

Kafka / Manuscrito: Um Diário de Viagem, Suiça, Itália, Paris, 1911. Biblioteca Nacional de Israel.

O pedido de destruição da obra

Em outubro de 1922, Kafka escreve o segundo testamento conhecido, desta vez a lápis, também dirigido ao seu amigo Max Brod. Aceita que se conservem os livros publicados em vida do autor, mas apenas estes. Max Brod decidiu ignorar o pedido de Kafka e publicar os romances e a obra completa entre 1925 e 1935. Levou consigo muitos papéis, que permaneceram sem ser publicados, nas suas malas quando fugiu para a Palestina em 1939. A última amante de Kafka, Dora Diamant, também ignorou os seus pedidos, mantendo secretamente vinte cadernos e trinta e cinco cartas que foram confiscados pela Gestapo em 1933. No entanto, há pesquisadores que continuam a procurá-los.

Kafka / Manuscrito: Escritos Autobiográficos, 1909. Biblioteca Nacional de Israel.

A Metamorfose Apresentação da Obra

Título: A Metamorfose Autor: Franz Kafka Tradução: António Sousa Ribeiro Prefácio: Vladimir Nabokov Editora. Relógio D'Água Ano de Edição: Nº de Páginas: A Metamorfose, escrita em 1912 e publicada em 1915, é uma das obras de referência de Franz Kafka. É considerada por muitos críticos uma das obras essenciais da ficção do século XX. Conta a história de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que trabalhava com tecidos, e que certa manhã acordou transformado num “bicho desconforme”, mais propriamente, um inseto enorme e repulsivo.

A Metamorfose Apresentação da Obra

Antes da transformação, era ele quem sustentava financeiramente a sua família, pois o seu pai, cerca de cinco anos antes, tinha perdido a maior parte de seu dinheiro. Gregor conseguiu um emprego com um dos credores do seu pai e tornou-se caixeiro-viajante. O pai deixou de trabalhar nessa altura, a sua irmã Greta era demasiado jovem para trabalhar e a mãe era asmática. Gregor não só sustentava a família, como também providenciou o apartamento onde a família mora e é neste apartamento que se passa a história narrada.

Ilustração da planta do apartamento dos Samsa, segundo o esboço de Vladimir Nabokov.

A Metamorfose Apresentação da Obra

Na sua nova condição de inseto, fica impossibilitado de ir para o trabalho e, consequentemente, de sustentar a sua família. Gregor deixa igualmente de conseguir comunicar com os seus familiares. Ao longo da história, o autor narra as angústias de Gregor, que, sem conseguir fazer nada, ouve sua família a discutir entre si como se sustentar, já que Gregor agora não o pode fazer. Gregor Samsa torna-se um peso insuportável e acaba por ser marginalizado pela família, ficando confinado ao seu quarto até ao final do livro que, como vamos ver, não é feliz.

Ilustração: Kafka como Gregor Samsa / Luis Scafati. Retirado de: https://www.elperiodico.com/es/ocio-y-cultura/20151124/bicho-la-metamorfosis-kafka-gregor-samsa-4698977

O Título: A Metamorfose

Esta obra de Kafka tem vindo a ser traduzida como A Metamorfose, sobretudo nas línguas francesa e inglesa (La Métamorphose) e (The Metamorphosis). As versões portuguesas também têm traduzido o título assim, quer por serem traduzidas a partir destas línguas e não diretamente do alemão, quer por influência delas e, de facto, este é o título que ao longo dos anos se associou a Franz Kafka e a esta obra que é umas das mais conhecidas do autor. De acordo com Álvaro Gonçalves, estudioso da obra de Kafka que o traduz sempre diretamente do alemão, A Metamorfose não seria o título mais adequado. A tradução rigorosa do original alemão Die Verwandlung é A Transformação. A expressão portuguesa A Metamorfose tem correspondência em alemão: Die Metamorphose.

Capa da edição original: Die Verwandlung, publicada pela editora Kurt Wolff Verlag, na coleção O Dia do Juízo (Der Jüngste Tag).

O Título: A Metamorfose

De acordo com o referido estudioso da obra de Kafka, este evitava utilizar expressões “técnicas” ou “científicas”. Expressava-se através do uso de uma forma original e criativa do chamado alemão praguense, que não era muito rico em vocabulário técnico. Dificilmente se imaginaria que Kafka utilizasse uma expressão técnica como “metamorfose”. Esta é uma expressão técnica utilizada para descrever a transformação que certos animais sofrem durante o seu desenvolvimento, desde que nascem, até atingirem a idade adulta. A designação “metamorfose” indica, assim, um processo lento, faseado e previsível, ao contrário do que aconteceu com Gregor Samsa. O protagonista acorda transformado em inseto, de forma radical, repentina e imprevisível.

Gravura de Igael Tumarkin (1933–2021). Gravura, água-tinta e ponta-seca sobre papel, 400 x 300 mm.Foto © Museu de Israel, Jerusalém, por Meidad Suchowolski.

O Título: A Metamorfose

Apesar de o título que mais se aproxima do original alemão ser “A Transformação”, a maior parte das traduções portuguesas mantiveram o título “Metamorfose” por este título já se encontrar imediatamente associado ao autor Franz Kafka e pela popularidade que adquiriu no conjunto da sua obra. A exceção é uma tradução da 11 X 17 (Bertrand) feita precisamente por Álvaro Gonçalves diretamente do alemão, em que o título “A transformação” aparece com maior destaque em relação ao título “A Metamorfose” que continua a aparecer na capa por ser o título que mais se associa a esta obra e a Kafka.

A Transformação / A Metamorfose. Edição 11 x 17

O processo de escrita de A Metamorfose

O processo de escrita da novela A Metamorfose está bem documentado nos Diários e na correspondência de Franz Kafka dirigida ao seu editor Kurt Wolf e, em especial, àquela que viria a ser a sua noiva, Felice Bauer (noivado que Kafka rompeu duas vezes). A 15 de novembro de 1910, Kafka regista a seguinte frase no seu diário: “Vou saltar para dentro da minha novela, mesmo que isso despedace o meu rosto.” Em carta de 17 de novembro de 1912 a Felice Bauer, Kafka refere-se a “uma pequena história” que lhe tinha vindo à mente enquanto se encontrava deitado na cama num estado miserável e que o atormentava intimamente.

Felice Bauer e Franz Kafka, em 1917

O processo de escrita de A Metamorfose

A 23 de novembro de 1912, numa carta dirigida a Felice Bauer, refere-se à história Die Verwandlung (que, como vimos, em alemão significa A Transformação, frequentemente traduzida como A Metamorfose) como “uma história um pouco assustadora”, afirmando ainda: “Iria assustar-te a valer”. Dias depois, numa outra carta escrita na noite do dia 6 de Dezembro do mesmo ano, Kafka dá por terminada a história, confessando ainda a sua insatisfação com a forma como a mesma termina, insatisfação que acompanhou toda a sua obra. Talvez por isso tivesse pedido a Max Brod que a queimasse. No Diário, a 20 de outubro de 1913, Kafka, escreve: «Li A Metamorfose e achei-a má. Talvez ande realmente perdido.»

Rascunho de uma carta para Felice Bauer, em 1912. Biblioteca Nacional de Israel.

O processo de escrita de A Metamorfose

A Metamorfose foi escrita em vinte dias. Ao contrário das três grandes obras publicados postumamente pelo amigo e testamenteiro Max Brod (América/O Desaparecido, O Processo e O Castelo), porque renegados pelo autor, Kafka mostra-se especialmente interessado em publicar a novela a que insistentemente e em sucessivas cartas dirigidas a Felice Bauer chama “a minha pequena história”, inserida numa coleção de três textos com o título: Os Filhos. A 11 de março de 1913 escreve ao editor Kurt Wolff, explicando que o fragmento O Fogueiro, a novela A Metamorfose e o conto A Sentença podiam ser incluídos num único volume com o título Die Söhne (Os Filhos).

Os Filhos - três histórias. A Sentença, O Fogueiro, A Transformação. Editora: Assírio & Alvim. Note-se que nesta edição portuguesa, o título referente à obra conhecida como A Metamorfose mantém a tradução original: A Transformação. Mantém também a ilustração da capa original da primeira edição da referida obra em alemão.

O processo de escrita de A Metamorfose

Kafka refere-se à relação íntima existente entre as três histórias: “O Fogueiro, A Metamorfose e A Sentença estão exterior e interiormente relacionadas umas com as outras, havendo entre elas uma manifesta, e mais ainda, secreta ligação.” (carta ao editor Kurt Wolff, 11 de Abril de 1913). As tensões entre pai e filho estão presentes nestes três contos escritos por Kafka entre 1911 e 1912 e nos três casos, de forma direta ou indireta, o filho sucumbe às mãos do pai. O título pensado por Kafka, Os Filhos, permite deduzir que esta seria a conexão entre os três textos.

Os Filhos. A Sentença - O Fogueiro - A Metamorfose. Editora: Ítaca (Edição portuguesa)

O processo de escrita de A Metamorfose

No entanto, apesar de o editor ter concordado inicialmente com o projeto, a ideia da publicação dos três textos não se concretizou. A publicação de um romance em folhetins do seu amigo Max Brod na revista Die Weissen Blätter, publicada na casa editora de Kurt Wolff, leva Kafka a interessar-se por esta revista. Em carta a Kurt Wolff datada de 7 de abril de 1915, Kafka manifesta interesse em que A Metamorfose seja publicada na sua revista, o que acontece no número de outubro do mesmo ano. Imediatamente a seguir, a editora Kurt Wolff Verlag propõe a sua publicação em separado na coleção Der Jüngste Tag (O Dia do Juízo).

Imagem do número da Revista Die Weissen Blätter que contém a publicação de A Metamorfose. A referência a Kafka aparece na segunda linha da capa referente ao conteúdo da revista: Franz Kafka: Die Verwandlung: Eine Erzählung (Franz Kafka: A Transformação. Uma narrativa).

O processo de escrita de A Metamorfose

“A pequena história” sai em livro em dezembro de 1915 na editora Kurt Wolff Verlag, no mesmo ano da publicação em revista. Dos textos publicados em vida, este viria a ser o mais paradigmático e conhecido de Kafka.

Ilustração de Rogelio Naranjo. Franz Kafka metamorfoseado em inseto. Imagem retirada de: https://manwithoutqualities.com/2014/07/03/kafka-born-on-this-day/

Ficha de Leitura A Metamorfose

1. Personagens

Gregor Samsa: É o protagonista, pois a narrativa gira em torno do que lhe acontece logo no início da história: a sua transformação em inseto. Ao longo do livro, Kafka mostra as alterações que a transformação de Gregor em inseto lhe causou: a rejeição da comida fresca, a capacidade de trepar pelas paredes e pelo teto, a impossibilidade de comunicar com a família porque perde a voz; a degradação da relação com a família porque esta tem dificuldade em confrontar-se com a sua nova aparência.

Pintura de Franz Kafka: Evans Bell. Imagem retirada de: https://fineartamerica.com/featured/franz-kafka-evans-bell.html

Ficha de Leitura A Metamorfose

Só Grete, a sua irmã, se disponibiliza a alimentá-lo e a limpar-lhe o quarto, mas com um zelo cada vez menor. O pai, austero e insensível, chega a atacá-lo com maçãs, e a mãe mal aguenta ser confrontada com o seu novo aspeto. Grete Samsa: Grete é a irmã mais nova de Gregor, tem dezassete anos. Toca violino e sonhava estudar no conservatório, sonho que Gregor pretendia realizar antes da sua transformação, uma vez que os pais não conseguiam fazê-lo em virtude da sua condição financeira. Como vimos, no início é Grete que cuida do irmão, acabando por ir gradualmente desleixando o seu tratamento. Acaba por ser a primeira a sugerir friamente livrarem-se de Gregor.

Ilustração de Paco Roca: A Metamorfose. Grete, a irmã de Gregor, a tocar violino.

Ficha de Leitura A Metamorfose

Para ajudar a aumentar os rendimentos da família, e após a transformação de Gregor, Grete começa a trabalhar numa loja como empregada de balcão, ao mesmo tempo que aprendia estenografia e francês à noite para conseguir um lugar melhor. No final da história, os pais de Grete percebem que ela ficou bonita e pretendem encontrar-lhe um marido. Senhor Samsa: O senhor Samsa é o pai do Gregor. Não trabalhava. Perdeu grande parte do seu dinheiro, e é por isso que o seu filho tem de trabalhar para que a família possa sobreviver. Após a metamorfose, é forçado a voltar ao trabalho para sustentar financeiramente a família. Vai trabalhar para um banco como contínuo.

A família Samsa. Ilustração retirada de: https://ivypanda.com/lit/study-guide-on-the-metamorphosis/characters-analysis-their-relationships/

Ficha de Leitura A Metamorfose

A sua atitude em relação ao filho é dura, atacando-o em várias ocasiões, ora ferindo-o, ora obrigando-o violentamente a ir para o seu quarto batendo com os pés e segurando uma bengala, ou mesmo atacando-o com maçãs. Mesmo antes da metamorfose, quando Gregor era humano, o Sr. Samsa considerava-o sobretudo a fonte de rendimentos da família. Senhora Samsa: A senhora Samsa é a mãe de Gregor. É retratada como uma esposa submissa e frágil. Sofre de asma, por isso, antes da metamorfose de Gregor, não trabalhava e era sustentada por Gregor. Fica inicialmente chocada com a transformação de Gregor, o que dá origem a um conflito entre o seu impulso maternal e o seu medo e repulsa pela nova forma de Gregor.

Ilustração de Robert Crumb: Adaptação de A Metamorfose de Franz Kafka para banda desenhada. Ilustração relativa à cena em que o pai de Gregor o obriga a ir para o quarto, empurrando-o violentamente com uma bengala.

Ficha de Leitura A Metamorfose

Após a transformaçãao de Gregor, começa a trabalhar para ajudar nas finanças da família, costurando “roupa interior fina para uma loja de modas”. (pag. 106) Cozinheira: Não conseguindo encarar a transformação de Gregor, pede à senhora Samsa para se ir embora e consegue autorização para deixar a casa. É uma personagem que sai de cena na segunda parte da obra. Ana: A empregada, de dezasseis anos, um ano mais nova do que Grete. Acaba por ser despedida pela família para contratarem uma empregada mais barata, uma mulher-a-dias, já na terceira parte.

Ilustração da família Samsa: Gregor no seu quarto transformado em inseto; o pai, a mãe e a irmã à porta do seu quarto. Ilustração retirada de : https://br.pinterest.com/pin/622341242239558123

Ficha de Leitura A Metamorfose

Mulher-a-dias: Esta é a última empregada dos Samsa, uma velha viúva, “gigantesca, ossuda, de cabelos brancos” (pag. 107) que foi trabalhar para a família Samsa depois de a empregada anterior ter sido despedida. É paga para se encarregar das tarefas domésticas mais duras da casa e “vinha de manhã e à tardinha para fazer o trabalho mais pesado” (pag. 107). Comparando com as empregadas anteriores, ou seja, a cozinheira e Ana, a mulher-a-dias é a que desempenha um papel mais significativo na história. Além de Grete e seu pai, a empregada é a única pessoa que mantém contacto próximo com Gregor e não tem medo de se relacionar com ele. Curiosamente, a mulher-a-dias não questiona o estado alterado de Gregor. Encara a metamorfose de Gregor como um estado que faz parte da sua existência.

Ilustração da mulher-a-dias quando encontra Gregor morto no seu quarto. Imagem retirada de: http://www.naveliteratura.com/2018/05/a-metamorfose-franz-kafka.html

Ficha de Leitura A Metamorfose

Chamava-o para junto dela com palavras que provavelmente considerava simpáticas, como: “Vamos, vem cá, meu besourinho-do-esterco!”. É ela quem percebe que Gregor morreu e se desfaz de seu corpo. Os três hóspedes: Alugam um quarto na casa dos Samsa após a transformação de Gregor. Eram “graves cavalheiros” e os três “usavam barba inteira”. (pag. 111)

Os três hóspedes sentados à mesa na sala dos Samsa. Ilustração: Eric Corbeyran, para a banda desenhada publicada em alemão Die Verwandlung.

Ficha de Leitura A Metamorfose

Gerente de Gregor: Chantageava Gregor por causa da dívida da família, obrigando-o a trabalhar exageradamente. Vai a casa de Gregor na manhã em que Gregor acorda metamorfoseado para se informar acerca da razão pela qual Gregor não tinha apanhado o primeiro comboio para trabalhar. O gerente é uma personagem-tipo, uma caricatura que representa o mundo do trabalho e a necessidade absoluta de dinheiro para sobreviver na sociedade.

Ilustração de Peter Kuper: Adaptação de A Metamorfose para banda desenhada: O gerente bate à porta da casa da família Samsa para se informar acerca da razão pela qual Gregor não tinha apanhado o primeiro comboio para trabalhar.

Ficha de Leitura A Metamorfose

2. A Narrativa: Estrutura e conteúdo A narrativa encontra-se dividida em três partes. Primeira Parte- A transformação A Metamorfose começa com um acontecimento insólito que apresenta desde o início o universo estranho que percorre o texto: a transformação de Gregor Samsa em inseto. Gregor estava quase sempre ausente, a viajar, em virtude da sua profissão. Mas quando a história começa, encontra-se a passar a noite em casa, entre duas viagens de negócios. Ao acordar, acontece algo espantoso e inesperado e o livro começa justamente com a narração deste acontecimento. Tem um início fabuloso, imortalizado na história por causar ao mesmo tempo horror e fascínio no leitor, e que ficou famoso na história da literatura:

Ilustração de Peter Kuper: Adaptação de A Metamorfose para banda desenhada.

Ficha de Leitura A Metamorfose

"Certa manhã, ao acordar de sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se em cima da cama, metamorfoseado num bicho desconforme.” (pag. 63). O livro não podia começar de forma mais bizarra. É um início absoluto, não é referida qualquer razão que justifique a metamorfose. Mas esta primeira frase é muito importante para perceber a história, pois toda ela gira em torno deste estranho acontecimento. Gregor acorda e está sozinho, percebe que algo diferente aconteceu e questiona “Que foi que me aconteceu?” (pag. 63 ). E, logo a seguir, o narrador esclarece que não era um sonho. Através da descrição inicial o leitor percebe logo que houve realmente uma transformação quando lê a descrição de Gregor:

Gregos Samsa acorda transformado em inseto no seu quartono quarto. IIlustração de Peter Kuper. Imagem retirada de: https://homoliteratus.com/quando-kafka-ganha-tracos/?__cf_chl_tk=7WhTExgshr2nRZpb0EmAM4EAmtwUMpu4hvubXcIrew4-1683372626-0-gaNycGzNDRA

Ficha de Leitura A Metamorfose

“Estava deitado sobre as costas duras como uma couraça e, erguendo um pouco a cabeça, via o ventre abaulado, castanho, riscado por nervuras em forma de arco, em cujo cimo, o edredão prestes a escorregar por completo, quase não se segurava. As suas muitas pernas, que, em comparação com a envergadura geral do corpo, eram lastimosamente delgadas, tremeluziam-lhe, incapazes, em frente dos olhos”(pag. 63). Mas Gregor não se apercebeu logo de todas as transformações do seu corpo, pensou tratar-se de uma tolice e procurou dormir mais: “E se dormisse mais um pouco e esquecesse estas tolices todas, pensou” (…)” (pag. 64).

Ilustração que mostra Gregor a procurar dormir mais um pouco, não se apercebendo inicialmente de todas as suas transformações: Imagem retirada de: https://ozymandiasrealista.blogspot.com/2021/02/a-metamorfose-kafka-e-naturalizacao-do.html

Ficha de Leitura A Metamorfose

Percebemos que as suas impressões humanas ainda se misturam com os seus instintos de bicho. A preocupação de Gregor é estar atrasado para apanhar o comboio e a ameaça de perder o seu emprego. Olha para o relógio, pensa no horário dos comboios - nem uma questão sobre o seu estado físico. Há, portanto, uma grande disparidade entre o que perceciona e o seu pensamento: “ Deus do Céu!”, pensou (…) Seria que o despertador não tocara?” (pag. 65 ). A descrição de Gregor corresponde a um inseto, porém a preocupação com o tempo é uma preocupação humana. Aqui o homem ainda prevalece sobre o animal. Esta primeira parte inicial é marcada pelo confronto e pela luta de Gregor com a sua nova forma, bem como pela reação da sua família face a esta nova realidade.

O pormenor do relógio no quarto de Kafka, simbolizando a sua preocupação com o tempo por se aperceber que está atrasado para o trabalho. Ilustração de Rohan Daniel Eason para o livro My First Kafka, uma adaptação de três histórias de Kafka, entre as quais A Metamorfose, em conjunto com o contador de histórias Matthue Roth.

Ficha de Leitura A Metamorfose

Gregor não consegue sair da cama devido à sua nova forma e a descrição da luta para se levantar, bem como a modificação da sua voz, é angustiante. A família bate à porta e a situação torna-se ainda pior quando o gerente da firma vai até à sua casa para averiguar a razão do seu atraso ao trabalho. Enquanto tenta acalmar o gerente e a sua família, Gregor tenta levantar-se da cama. A sua intenção é convencer o gerente e a família que sofreu um pequeno contratempo, mas já está pronto para ir trabalhar. Entretanto, a sua voz transforma-se em ruídos e a família fica ainda mais preocupada porque não consegue comunicar com Gregor. Convencidos de que Gregor pode estar doente, chamam um médico e um marceneiro para abrir a porta do quarto.

IIustração de Robert Crumb para a novela gráfica Introducing Kafka do autor David Mairowitz. O gerente da firma à porta do quarto de Gregor para averiguar a razão do seu atraso ao trabalho, acompanhado pelo pai e mãe de Gregor. Imagem: https://cocoscuriosities.wordpress.com/2014/05/04/the-metamorphosis/

Ficha de Leitura A Metamorfose

Após muitas dificuldades, Gregor consegue abrir a porta e caminha na direção do gerente, para dar uma explicação sobre o seu atraso. Todos notam que a aparência de Gregor está muito estranha e assustam-se. O gerente retrocede horrorizado e cambaleia em direcção às escadas para fugir, embora Gregor o tivesse tentado acalmar; a mãe dá um salto, derrubando a cafeteira que está em cima da mesa do pequeno-almoço, entornando o café no tapete; O pai tem uma atitude violenta, avança contra ele, batendo com os pés no chão e sacudindo uma bengala, força-o brutalmente a entrar de volta no quarto. No confronto com o pai, Gregor fica entalado, dolorosamente magoado e uma das suas patas fica ferida.

Ilustração de Peter Kuper para a Novela Gráfica A Metamorfese: Gregor a tentar abrir a porta do quarto.

Ficha de Leitura A Metamorfose

A vida de Gregor passa a ficar confinada ao quarto, porque a sua família o rejeita. Passa a ter como companhia somente ele mesmo e apenas encontra conforto debaixo do canapé do seu quarto. Só a sua irmã, Grete, no início mostra alguma compaixão por ele. É ela que o alimenta e limpa o quarto, dedicação que só durará algum tempo, como vamos ver. Segunda Parte- O quarto de Gregor. O arremesso das maçãs. A irmã de Gregor traz-lhe alimentos ao quarto, um prato de leite, mas Gregor já não consegue comer alimentos frescos. O seu gosto de inseto recusa o alimento de mamífero. Gregor prefere a segunda selecção de alimentos que Greta lhe traz: verduras podres, queijo bolorento, ossos velhos com molho branco e é este o estranho menu que agrada a Gregor, já na sua condição animal.

Ilustração

Paula Rego: A Metamorfose após Kafka (2002). Propriedade do Kistefos Museum. Imagem retirada de: https://csk.art/en/metamorphosing-after-kafka-paula-rego. É interessante notar o pormenor dos alimentos ao pé da figura que representa Gregor Samsa.

Ficha de Leitura A Metamorfose

Entretanto, a cozinheira implora à senhora Samsa que a deixe ir-se embora. Agradece aos Samsa a autorização para partir e compromete-se a não dizer nada a ninguém sobre o que se passou na casa. Grete percebe que Gregor tem falta de espaço para se movimentar no quarto, pois vê as marcas de Gregor nas paredes e no teto do seu quarto, uma vez que, como distração, costuma percorrê-las. Assim, Grete e a mãe resolvem mudar os móveis do quarto para que Gregor possa andar mais livremente. Passaram dois meses e é a primeira vez que a mãe entra no quarto de Gregor. Este fica dividido entre duas emoções: por um lado, a sua nova natureza animal agradece a mudança porque pode andar mais livremente no quarto; ; por outro lado, a voz da mãe recorda-lhe a sua

Ilustração do quarto de Gregor com o pormenor do canapé debaixo do qual se refugia. Imagem retirada de: https://escotilha.com.br/literatura/livro-a-metamorfose-franz-kafka-faz-cem-anos/

Ficha de Leitura A Metamorfose

natureza e origem humanas e, assim, entende que retirar os móveis era acabar com o seu resto de humanidade. Por isso, tenta desesperadamente salvar uma gravura particularmente amada que estava pendurada na parede, e cuja fotografia que tinha recortado de uma revista ilustrada mostrava uma com um chapéu, vestida com uma estola em pele, e que havia colocado numa moldura bonita e dourada. Embora Gregor tentasse esconder-se durante a mudança dos móveis, acaba por ser visto pela mãe, que desmaia quando vê Gregor. Greta tenta animá-la. É a partir deste episódio que se começa a verificar uma alteração do comportamento da irmã perante Gregor: “Estás a ver, Gregor!” (pag. 100) .

Robert Crumb ilustra a cena em que Greta conta ao pai acerca do desmaio da mão quando viu Gregor. Imagem retirada de https://www.themarginalian.org/2015/04/01/r-crumb-kafka/

Ficha de Leitura A Metamorfose

Gregor está à porta do quarto, aflito com o desmaio da mãe, e depara-se com o seu pai que o ataca com maçãs. Uma delas fica embebida nas suas costas, causando tanta dor que o faz desmaiar. Desde o princípio da transformação de Gregor que o pai estava desejo de ferir fisicamente o filho indefeso. A maça embebeu-se na carne de escaravelho de Gegor. Em passagens seguintes, fala-se várias vezes sobre a maçã que fica incrustada nas costas de Gregor, o que é um símbolo do desprezo do pai por Gregor transformado em inseto. Depois de certo período, o ferimento da maçã infeta e, juntamente com a inanição, contribui para o enfraquecimento de Gregor, o que terá, como veremos, consequências fatais para Gregor, já na terceira parte.

O ataque com as maçãs ilustrado por Robert Crumb. Imagem retirada de: https://www.themarginalian.org/2015/04/01/r-crumb-kafka/

Ficha de Leitura A Metamorfose

Terceira Parte- Os três hóspedes. A morte de Gregor e a reação da família Na terceira parte, descreve-se a nova rotina da família Samsa para garantir a sobrevivência, agora que o filho, o trabalhador incansável que suportou um emprego que não lhe agradava para poder sustentar a família e até para pagar as aulas de violino da irmã, está reduzido à condição de inseto: vendem várias jóias de família, despedem a empregada e contratam uma mulher-a-dias mais barata que fica encarregue das tarefas mais duras. É igualmente nesta terceira parte da obra que percebemos que também a família passa por uma transformação.

Ilustração de Danielly Dias: Gregor e a sua família à mesa, simbolizando a transformação da família. Imagem retirada de: https://br.pinterest.com/daniellydiass_/a-metamorfose/

Ficha de Leitura A Metamorfose

Com efeito, a metamorfose de Gregor é acompanhada por outra menos dramática, mas igualmente assinalável, dos restantes membros da família que começam a trabalhar: o pai como contínuo de um banco, a mãe costura roupa interior para fora e a irmã vai trabalhar para uma loja como empregada de balcão. Assim, a família, que até então vivera às custas de Gregor, como parasita do filho, ganha novo alento e rejuvenesce. O pai, regressando à vida profissional, recupera a sua antiga autoridade; a mãe, até então sempre doente, melhora da asma; a irmã torna-se uma jovem adulta, bonita e pragmática.

Ilustração de Carina Reis. Retirada de:https://www.behance.net/gallery/23348437/Metamorfosis .........................

Ficha de Leitura A Metamorfose

Porém, a vitalidade da família acompanha o declínio de Gregor. Quando começa a trabalhar, Grete abandona cada vez mais Gregor. A alimentação de Gregor deixa de ser cuidada e o quarto já não é limpo com frequência, acabando por ficar cheio de novelos de pó e de lixo que ficam agarrados às costas e aos flancos de Gregor fios de cabelos e restos de comida: “Sem já estar agora a pensar com que se poderia agradar especialmente a Gregor, a irmã, antes de, de manhã e à hora de almoço, ir a correr para a loja, empurrava a toda a pressa com o pé uma comida qualquer ao acaso para o quarto de Gregor, para, à tardinha, sem se importar se a comida fora apenas provada ou – o caso mais frequente- ficara completamente intocada, a varrer para fora do quarto com uma vassourada.

Gregor abandonado no seu quarto. Ilustração realizada por: Benjamin Woodard. Imagem retirada de: https://br.pinterest.com/daniellydiass_/a-metamorfose/

Ficha de Leitura A Metamorfose

A arrumação do quarto, de que agora tratava sempre ao fim da tarde, não podia já ser despachada mais à pressa. Havia faixas de sujidade a estender-se pelas paredes, aqui e ali, viam-se novelos de pó e de lixo.” (pag. 109) Curiosamente não é a mulher-a-dias que cuida do quarto de Gregor, mas, ainda assim, estabelece-se uma curiosa relação entre os dois. A criada não se assusta com a presença de Gregor, pelo contrário, até parece divertir-se e gostar dele. Chama-lhe “meu besourinho-do-esterco!”, achando que é uma forma simpática de o tratar. (pag. 110)

Ilustração de Chris Kowal. Gregor no seu quarto cada vez mais sujo. Imagem retirada de : https://br.pinterest.com/daniellydiass_/a-metamorfose/

Ficha de Leitura A Metamorfose

Ainda nesta terceira parte, os Samsa decidem alugar um quarto para ter alguma fonte de renda. O quarto é alugado por três inquilinos, que vivem na casa por um tempo, interferindo no ambiente doméstico. A família Samsa passa a tomar as refeições na cozinha, uma vez que a sala fica reservada para as refeições dos hóspedes. Na hora do jantar, Grete toca violino para os inquilinos. Gregor, do seu quarto, ouve e fica tão encantado com o som que segue em direção à sala de jantar. Num primeiro momento, ninguém se apercebe da sua presença, mas após alguns segundos, um dos inquilinos vê Gregor e grita. O Sr. Samsa tenta afastar os inquilinos de modo que não vejam o inseto e ao mesmo tempo fazer com que volte para o seu quarto.

Os três inqulinos da famíla Samsa. lustração de Rohan Daniel Eason para o livro My First Kafka.

Ficha de Leitura A Metamorfose

Depois desse incidente, Grete, único membro da família de quem se sentia mais próximo, perde toda a compaixão por ele e chega à conclusão que eles se devem livrar dele: “Não quero pronunciar o nome do meu irmão em frente deste monstro e, assim, não digo senão isto: temos de tentar livrar-nos dele” (pag. 117). Ao longo do tempo, o ferimento causado pela maçã incrustada no seu corpo vai aniquilando Gregor que acaba por morrer de inanição. A descrição da morte de Gregor é uma dos momentos mais tocantes da história: “quase não sentia a maçã apodrecida que tinha nas costas e a zona inflamada, que estava totalmente coberta por um pó macio. Recordava-se da família com comoção e amor.

Gregor a ser atacado pelo pai que lhe atira brutalmente maçãs, uma das cenas mais marcantes do livro. Ilustração de Peter Kuper na adaptação da Metamorfose para Novela Gráfica.

Ficha de Leitura A Metamorfose

A sua convicção de que tinha de desaparecer era, se possível, ainda mais categórica do que a da irmã. Permaneceu neste estado de reflexão vazia e pacífica até o relógio da torre dar as três horas da manhã. Ainda assistiu ao despontar do dia lá fora atrás da janela. Depois, sem querer, a cabeça descaiu-lhe por completo e as suas narinas exalaram debilmente o último suspiro.” (pag. 120). É a empregada que encontra Gregor morto e o comunica à sua família: “Ora venham ver, espichou; está ali todo espichado!” (pag. 121). O comentário do pai perante esta notícia é arrepiantemente impressionante, pois revela a sua frieza: «“Bem”, disse o senhor Samsa, “agora podemos agradecer a Deus.”» Fez o sinal da cruz e as três mulheres seguiram-lhe o exemplo.

A morte de Gregor. lustração de KitsuneBara, retirada de: https://i.pinimg.com/564x/c3/98/97/c3989769562b39b5d71b6d9cddfae2ca.jpg

Ficha de Leitura A Metamorfose

Após a empregada acabar de limpar o quarto que havia sido habitado por Gregor, e depois do Sr. Samsa ter mandado embora os hóspedes, a família sai de casa feliz. Já não pensavam na morte de Gregor e viam uma certa esperança num futuro próximo, em que poderiam comprar uma casa mais confortável. O final da obra tem um carácter irónico e mesmo perverso, na medida em que, com a morte do inseto, a vida da família Samsa se tornou mais bela; os três restantes membros – Sr. Samsa, Sra. Samsa e Grete – tiram folga do trabalho e vão passear num bonito dia iluminado pelo sol primaveril. Fazem planos para arranjar um marido para Grete.

A família Samsa. Pormenor da ilustração de Carina Reis. Retirada de: https://dribbble.com/shots/2087771-Metamorphosis#

Ficha de Leitura A Metamorfose

Note-se que, depois da morte de Gregor, Kafka não se refere ao casal como o pai e a mãe, mas sim como – Sr. Samsa, Sra. Samsa. Trata-se de um epílogo depois da morte inevitável de Gregor, quando é restabelecida a ordem após a expulsão do elemento não conforme com a sociedade.

A morte de Gregor. Ilustração retirada de: https://br.pinterest.com/daniellydiass_/a-metamorfose/

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

Franz Kafka é, sem dúvida, uma das figuras mais intrigantes e perturbadoras da literatura. Apesar de ter trabalhado em companhias de seguros, a escrita era o seu verdadeiro interesse e foi o seu grande ofício. Sobre Franz Kafka, em carta datada de 17 de fevereiro de 1922, o escritor Rainer Maria Rilke, escreve ao editor de Kafka, Kurt Wolff: “Nunca li uma linha deste autor que não fosse estranhamente tocante e surpreendente”. Também o escritor Vladimir Nabokov partilha desta opinião, quando o compara com outros escritores do século XX: “É o escritor alemão mais importante do nosso tempo”. A Metamorfose é uma das suas obras de referência. Dos textos publicados em vida, este viria a ser o mais paradigmático e conhecido de Kafka. É uma obra inesquecível e profundamente imaginativa. Kafka chamou-lhe insistentemente e em sucessivas cartas dirigidas à sua noiva Felice Bauer “a minha pequena história”. Mas mesmo os pequenos textos podem ser grandes obras. É indubitavelmente o caso da Metamorfose, publicada em 1915. Lê-se de uma enfiada e deixa-nos sem fôlego. É impossível lê-la e permanecer indiferente. É uma história inquietante, misteriosa e sobretudo bizarra. É a prova que Kafka é um mestre na descrição de mundos absurdos e cruéis.

Gregor Samsa 3 (homenagem a Kafka) CM 150X100, 2002 (Pintura por Stefano Nardi

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

Num artigo que li acerca de Kafka no Jornal de Letras para assinalar os cem anos de A Metamorfose, intitulado Kafka, um escritor eterno afirmava-se: “As leituras são construções de cada leitor, e, assim, haverá tantas atribuições de sentido como pessoas a abeirar-se dos textos.” Esta afirmação significa que a interpretação de uma obra literária é sempre influenciada pelo sentido que lhe atribuímos quando a lemos. A interpretação que se segue é fruto da minha leitura e interpretação após ter lido A Metamorfose, confrontada também com a pesquisa que fiz acerca desta obra. Será, possivelmente, uma entre várias interpretações possíveis, pois A Metamorfose é uma obra invulgar. O mundo de Kafka não é agradável. A Metamorfose é um conto sombrio, uma história avassaladora que causa arrepios, mas, ao mesmo tempo, é muito tocante. Esta obra não é apenas a narração da história de um homem que um dia acordou transformado em inseto. Kafka parte da repentina e chocante transformação de Gregor num inseto para refletir sobre a condição humana e o peso que a forma como vivemos pode exercer sobre nós, por exemplo, sobre a forma de um trabalho de que não gostamos e que representa um sacrifício.

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

De facto, na primeira parte da obra, percebemos que Kafka não gostava do seu trabalho, este representava apenas um meio para garantir o sustento da família: “Se não me contivesse por causa dos meus pais, há muito que me teria despedido, tinha ido ter com o patrão e dizia-lhe o que me vai na cabeça sem papas na língua. De certeza que caía da escrivaninha abaixo. Também, é um hábito esquisito, sentar-se na escrivaninha e sentar-se lá do alto com o empregado que, ainda por cima, tem de se aproximar ao máximo, por causa da surdez do patrão. Bem, a esperança ainda não está totalmente perdida; mal tenha juntado dinheiro que chegue para pagar o que os pais lhe devem (…) de certeza absoluta que dou esse passo.” (pag. 64-65) A Metamorfose pode ser lida como uma metáfora. Uma metáfora de como a economia e o mundo do trabalho podem afetar as relações humanas. O valor de Gregor Samsa, sobretudo para o pai, reside no rendimento que garante a sobrevivência da família, pois é o único a trabalhar e a ganhar dinheiro, a família vive à sua custa. Uma metáfora de como podemos ser oprimidos por um patrão desconfiado. Em A Metamorfose, o patrão manda o gerente a casa dos Samsa para averiguar a razão pela qual Gregor não foi trabalhar, apesar de em cinco anos de serviço nunca ter faltado ao trabalho uma única vez.

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

A Metamorfose mostra o caráter materialista da sociedade do início do século XX, que não é muito diferente da sociedade dos nossos dias. A Metamorfose pode ser interpretada como uma metáfora para a dor humana diante do peso da vida e da pressão da sociedade. Reflete sobre a angústia individual, a solidão, a estranheza da realidade e a desesperança humana, a relação inevitável entre a vida e a morte. Apesar de o tema ser insólito, Kafka consegue apresentá-lo com precisão, recorrendo a uma linguagem clara e a descrições cinematográficas do ambiente em que se passam os acontecimentos narrados, a casa dos Samsa, das situações mais estranhas e inesperadas, bem como das personagens. A este propósito, no final do prefácio, Vladimir Nabokov afirma: “Prestemos atenção ao estilo de Kafka. Na sua claridade, no seu tom preciso e formal, em agudo contraste com o assunto tenebroso do conto. Não há metáforas poéticas a adornar esta severa história a preto-e-branco. A nitidez do seu estilo sublinha a riqueza perversa da sua fantasia.” (pag. 60 )

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

Um acontecimento tão insólito como seja a transformação de um homem em inseto é relatado de forma tão realista que faz com que entremos na história e não consigamos parar de ler. O que causou então a metamorfose do caixeiro-viajante, que o levou a perder a figura humana e a ficar com a voz roufenha de animal, a gostar de comida apodrecida, a rastejar pelas paredes e pelo tecto e a ver cada vez menos? Não há uma resposta a esta questão. E talvez seja esta ausência de explicação que torna o livro tão cativante. Quem leu esta obra consegue compreender que a mestria de Kafka consiste em descrever, de forma brilhante, os traços de inseto de Gregor enquanto “bicho desconforme”, mas mantendo ao mesmo tempo viva a sua natureza humana, doce e delicada. Apesar de acordar transformado em inseto, Gregor nunca perde totalmente a sua humanidade. É um ser humano que deixa de ser Homem, mas que continua com traços humanos. Na verdade, Gregor tem traços de inseto. No entanto, nunca perde traços humanos como a bondade e amabilidade, a sua preocupação com os outros. Preocupa-se com o bem-estar da família, com a felicidade da irmã e com o incómodo que ele provoca em casa. A primeira preocupação de Gregor após acordar é com o tempo, pois está atrasado para apanhar o comboio e, como sabe que a sua família depende dele para sobreviver, não quer perder o emprego.

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

A preocupação de Gregor com o tempo revela que, apesar de se ter transformado num inseto repugnante, ainda mantém preocupações humanas: só os humanos se preocupam com o passar do tempo. Gregor é-nos descrito como um animal completamente repugnante e grotesco aos olhos de todos, mas, ainda assim, não conseguimos evitar sentir simpatia por ele e pela situação que vive. Gregor é um inseto indefeso e é capaz de sentir a indiferença dos pais e, mais tarde, até da irmã. Este livro revela-nos, de uma forma crua, a frieza humana. Também vi esta história como a demonstração do egoísmo de que o ser humano é capaz, uma crítica à mediocridade e mesquinhez humanas personificadas pela família de Gregor. A sua maior preocupação não reside no facto de o jovem Samsa se ter transformado num inseto e ter perdido a forma humana, mas sim no facto de terem perdido o seu sustento. Quando a metamorfose impediu Gregor de ir trabalhar, e passou a ser o parasita de quem o parasitava, trataram-no com desprezo e abandonaram-no. Até a irmã de Gregor, Grete, o único membro da família de quem se sentia mais próximo, acabou por o trair.

A Metamorfose Uma Interpretação pessoal

Foi Grete quem disse: “Não quero pronunciar o nome do meu irmão em frente deste monstro e, assim, não digo senão isto: temos de tentar livrar-nos dele. Tentámos o humanamente possível para cuidar dele e suportá-lo, julgo que ninguém pode fazer-nos a mínima censura.” Disse ainda ao pai: “Temos de tentar livrar-nos disto, disse a irmã, agora exclusivamente ao pai (…) ainda vai acabar por vos matar, estou mesmo a ver. Quando se tem de trabalhar tanto como todos nós, não se consegue, ainda por cima, aguentar em casa este tormento constante. Eu também já não consigo.” (pag.118) Ao transformar a personagem principal num inseto, Kafka realça o contraste entre a sua pureza e o caráter medíocre e materialista dos que o rodeiam, os verdadeiros parasitas, ou seja, a sua família. Na família de Gregor está outra metáfora de A Metamorfose: os membros da família de Gregor são os verdadeiros “parasitas”. Como diz Vladimir Nabokov no prefácio que escreve para este livro: a família consome-o, alimenta-se dele, aproveita-se dele. “Gregor é um ser humano sob um disfarce de inseto; os seus familiares são insetos disfarçados de pessoas.” A Metamorfose é uma obra inesquecível e profundamente imaginativa, ao mesmo tempo avassaladora. Provoca arrepios. Lê-se de uma enfiada e deixa-nos sem fôlego. É impossível lê-la e permanecer indiferente. É uma história inquietante, misteriosa e bizarra, mas sobretudo cativante. É a prova que mesmo os pequenos textos podem ser grandes obras.

Bibliografia

Kafka, Franz (2018). A Metamorfose (1ªed). Portugal: Livros do Brasil. Kafka, Franz (2021). A Metamorfose (1ºed). Lisboa: Relógio D’Água Editores. Kafka, Franz. (1974) . Letters to Felice (2ºed). Reino Unido: Vintage Publishing.

Webgrafia

Villas-Boas, Gonçalo, & Silca, Isabel Castro, Moutinho, José Viale., Os cem anos de A Metamorfose Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XXXV, Nº 1172, Setembro de 2015, in https://www.centrolusitania.eu/download/jornaldeletras-1172.pdf (Consultado a 12/04/2023)

Editora Contexto. (2016) O que define algo como “kafkiano”?, in https://blog.editoracontexto.com.br/o-que-define-algo-como-kafkiano/ (Consultado a 12/04/2023)

Pand, Ivy (2022), The Metamorphosis Characters, in https://ivypanda.com/lit/study-guide-on-the-metamorphosis/characters-analysis-their-relationships/ (Consultado a 01/05/2023)